Consumir, também, devagar.
Quem é que não é fã de uma pechincha? E de uma novidade? E de uma fantástica tarde de compras que alimenta a nossa autoestima e (sem julgamentos) o nosso ego?
Eu adoro! Confesso que o consumo tem um efeito positivo em mim.
Ou tinha.
Talvez continue a ter, mas após mudanças de casa que me levaram a confrontar, literalmente, o peso e dimensão dos objetos acumulados, muitos deles guardados, outros esquecidos, tenho dado por mim a refletir em vários pontos:
1 – “Quantas centenas ou milhares de euros estão aqui em objetos?”
2 – “Como é que consigo guardar tanta coisa?”
3 – “ Se acontecesse uma catástrofe em que, após garantir a segurança da minha família, despendesse de apenas 3min para levar algo comigo, o que levaria?”
4 – “O que é que eu realmente uso?”
5 – “Quantas vezes utilizei isto nos últimos 2 anos?”
Mudei recentemente de casa e, devo dizer: que experiência dolorosa! A quantidade de “tralha”, caixas e sacas preenchidas de objetos mínimos, estéreis em experiências, muitos deles estragados por danos externos (pó, humidade, oxidação), uns com expectativa de valor sentimental, outros que não passam de peças avulsas de reposição (pilhas, parafusos, botões) …
E para quê? O que são estas caixas e sacas? O que representam na minha vida?
Estou a milhas de ser uma especialista em organização e psicologia, mas arrisco-me a inferir que claramente todos nós temos um lado que identifica a recompensa imediata no consumo. A questão é: é uma recompensa demasiado imediata. Muito deste consumo não perpetua o seu próprio sentido de novidade após o primeiro uso.
Packaging: a Maçã Vermelha no paraíso

Uma das coisas que tenho vindo a reparar é o fantástico packaging que torna um objeto ainda mais cobiçado. Mas o despir da casaca deste objeto simplifica-o a uma existência insípida, de linhas minimalistas sem alma nem presença. Num ápice, a beleza associada a este objeto é eliminada em 70% ao desempacotá-lo. Isto acontece muito frequentemente com, por exemplo, colecionáveis como merchandising das sagas mais famosas de filmes e séries que nos faz apaixonar pela ideia de beber café por uma caneca que remete em 5% da sua decoração a uma casa de feiticeiros. Até porque possuir estes colecionáveis descreve-nos, é parte da nossa identidade “Eu adoro Game of Thrones, como podes ver pelo tote bag que estou a usar!”
Isto é aplicável a toda uma panóplia de materiais que envolvem a nossa existência comunitária. Desde a moda à decoração, do entretenimento às celebrações sazonais, desde a beleza à compra de medicamentos sem receita médica, do eletrodoméstico à novidade em tecnologia móvel. Há um ritual comum a toda e qualquer compra não essencial: a sua profunda efemeridade no impacto positivo em nós. Comprei uma belíssima blusa por 10€ e essa blusa colmatou uma hipotética falta básica no meu roupeiro, mas, após a primeira lavagem, essa mesma blusa é só mais uma na gaveta, acrescentando uma enorme deceção na descida de qualidade, pois foram retirados todos os produtos que tornavam aquela mesma peça reluzente e perfeita a um preço invejável. E assim torna-se um pobre trapo cosido em linhas tortas, possivelmente já com algum borboto e com a sua cor esbatida em pelo menos 60% de opacidade.
E a sua compra foi tão fácil, tão acessível, no timing da moda em vigor. E a sua experiência foi como comprar um croissant numa bomba de gasolina: brilhante na montra, razoavelmente agradável ao sabor, com um rápido pico de insulina, para depois ser processado e descartado como todos nós sabemos.
Dessa forma, volto a perguntar-me: para quê? Para quê tanta coisa? Com que objetivo? Porque é que preciso de comprar uma máquina de waffles em forma de dinossauro?
A resposta — parece-me — não é tão óbvia quanto isso. Não se trata apenas de não precisar. Trata-se da consciência de uma estratégia no meu comportamento enquanto consumidora e do panorama do consumo atual ao nível coletivo. Não, não estou a falar de uma guerra aberta ao mercado de consumo. Refiro-me a uma consciência individual que, inevitavelmente, terá o seu impacto. Ainda que a uma escala muito micro — essa influência poderá repercutir-se em multiplicação dentro do nosso círculo de influência.
Criatividade a favor das nossas escolhas

Não, não estou a sugerir uma dedicação vocacional ao Faça Você Mesmo. Muito menos a uma regressão hippie na produção dos nossos próprios casacos. Mas a criatividade neste contexto poderá tornar-se um impulsionador na nossa forma de priorizar, aplicar estratégia em economia e objetivo de propriedade.
Mas se possuir o domínio do artesanato/ofício manual, porque não desenvolver ou pô-lo em prática?
– “Esquece, não tenho tempo!”. Pois não…! É esse o fator basilar! Mas o tempo vem da oportunidade. Oportunidade em criar esse tempo. Estrategicamente falando, estamos perante uma falta de ansiedade. Sim, ansiedade. Uma presença temporária no futuro.
– “Ah, referes-te a organizar-me antecipadamente?” – hã…é isso. Não posso esconder-me. Passa por aí.
Caso prático:
Passaram-se alguns dias desde o carnaval. Eu, agora mãe, tenho que me organizar segundo uma agenda bastante rígida de atividades pedagógicas, lúdicas e, até mesmo, sociais da minha filha que ainda não tem 2 anos. E com isso vem uma série de e-mails, incluindo o assunto “Carnaval”. Ora, mais um evento com dress code. O que se passou é que desta vez recusei-me, com todas as forças do meu ser, a gastar 20€ (no mínimo) numa fantasia de poliéster que iria ser usada durante 8h, para no fim do seu uso ser arquivada e esquecida numa saca plástica. Não! Não, não, não! Tanta esterilidade em 2mt de tecido-plástico! Decidi-me, ainda que com parcos conhecimentos artesanais, a fazer o fato da miúda. Primeiro, considerei uma fantasia que ela soubesse perfeitamente o que é e que pudesse identificar-se com a brincadeira proposta. Ela gosta de gatos, consegue dizer gato e “miau” e tem um gato em casa: vai de gato! Assim consegui vesti-la confortavelmente num fato que nenhum amiguinho repetiu ou que o pai/mãe conseguiu encontrar num supermercado ou no party fiesta. E assim, passei 3 dias focada em desenhar mentalmente o look, procurar e escolher os materiais e imaginar a possível reutilização de roupa do dia-a-dia para a adaptação da fantasia.
E assim, em 3, 2, 1, regressei às tesouras, às colas, ao passar linhas na agulha e à sensação do “isto até que não está mal. E fui eu que fiz!”. Isto, meus caros, é uma sensação de recompensa que se perpetua. Porquê? Porque aquele objeto finalizado é tão único, tão personalizado que se transforma imediatamente numa memória. A memória de 3 dias em que andei em modo estilista infantil e que a minha filha desfrutou dessa dedicação. Essa recompensa é crescente. Vai se realizando à medida que produzimos, vemo-la crescer e a materializar-se.
O processo da escolha

Foi nesta sequência de pequenos eventos que me levaram a questionar profundamente as minhas escolhas. E desde então percebo que é no processo onde reside a satisfação. Não estou a tentar evocar um absentismo de consumo “Vou parar de consumir porque não preciso e o caminho da sustentabilidade é o minimalismo.” Se este pensamento estiver em ti, tanto quanto melhor! Mas somos humanos, e sim, há uma profunda satisfação em possuir algo que não temos.
E, desta forma, coloco-me a favor do equilíbrio e da consciência que “errar” faz parte da nossa condição. Porque sim, mereço um vestido novo que me vai fazer sentir uma personagem “Jane Austenesca” a roçar a bainha nas ervas altas de um descampado. A questão é que, no meu caso e na minha escolha estilística de século XIX, não encontro a peça idealizada na Lefties ou na Zara. E ainda bem! Porque me dá a oportunidade de explorar uma aplicação como a Vinted onde posso encontrar objetos perdidos no tempo e no espaço. E que delícia é construir visualmente o que o meu sistema límbico deseja!
E é nesta jornada da procura pela peça perfeita que:
1# Ganho tempo porque não consumo até a encontrar;
2# a compra vai ser de facto desejada e objetiva;
3# vou conhecendo-me através dos meus próprios ideais ainda por nascer.
Economia: porque o barato pode, por vezes, sair mesmo barato
Sim, sim. Sustentabilidade. Já aqui vai.
Preciso mesmo de alongar-me neste assunto? (penso que não)
Objetos em 2ª mão, economia circular, reutilização, reciclagem, etc.
É um negócio indubitavelmente vantajoso para todos!
Moral da História

Já lá vão muitas palavras e caracteres escritos. Como em tudo na vida, a experiência é chave. É o sentir das “coisas”. É o consumir, também, devagar. E com vagar.
Consumimos cegamente e à velocidade da internet. Consumimos tanto quanto o nosso dispositivo digital e os horários das centenas lojas disponíveis em pequenos raios de km, nos permitirem. Há stock para hoje e para os próximos milénios. Mas nós só dispomos de umas décadas de vida. Apelo: não as desperdicem em visuais e modas ditadas por especialistas de venda.
Usufrui da experiência do objeto. Do maravilhoso enredo do livro que o teu amigo recomendou, do vestido que usaste naquele concerto, do robô de cozinha que patrocinou dezenas/centenas de doces que preparaste para as tuas visitas, a televisão que conseguiu durar 20 anos onde te juntaste em família para discutir qual o melhor filme para ver todas as 6ª feiras, do casaco que era da tua avó ou do teu avô que herdaste e que ostentas como portador oficial dos tesouros geracionais, da primeira mesa de centro que os teus pais compraram e que está na tua sala porque simplesmente te recorda de um início de vida de um jovem casal que não chegaste a conhecer.
E que estes objetos sejam únicos e escassos na tua mudança de casa. Porque objetos vêm, vão, as mudanças acontecem, mas certas “coisas” permanecem. E permanecem para sempre.
A um consumo slow!
Obrigada por estares desse lado!
Sara, Slow Living Portugal