A lei do MAIS UM
Esta semana confrontei-me com uma realidade do MAIS UM. É uma realidade que – diria – coloca qualquer mãe e pai, no mínimo, num estado de sismo emocional.
A minha filha transita para a sala dos 2 anos neste próximo ano letivo. Em conversa informal com a educadora sobre o que esperar do novo ano, escorregou a informação de que iriam entrar mais 10 crianças para a sala.
Vamos às matemáticas:
a sala do 1 ano tem um grupinho de 9 crianças
vão entrar crianças além do que a capacidade da sala (para começar, mais do dobro)
falamos de uma nova sala de 19 crianças – acrescentemos mais uma que chega por “amizade” e que é aquela “só MAIS UMA”, para arredondar.
20 crianças para quantas educadoras/auxiliares? 2. Um rácio de 10 crianças por adulto.
Agora os contextos:
Convém já salientar que a minha filha está numa creche privada
Falamos de crianças que ainda não têm independência em motricidade, coordenação, fala, regulação emocional, controlo de urina e fezes, entre outras tantas capacidades.
Estas crianças de 2 anos passam, muitas delas, 8-10 horas afastadas dos pais
Crianças que saem de uma sala com capacidade reduzida (face ao dobro que agora as espera) para uma exigida integração fluida no novo ambiente (e o quanto antes)
Crianças de 2 anos que passam a grandiosíssima parte do dia afastadas das pessoas que mais conforto e regulação emocional lhe trazem para agora se verem dentro de uma sala com o dobro dos gritos, dos empurrões e das exigências de grupo.
(Poderia dar o texto por terminado. Mas vou continuar.)
Bem-vindos ao país…perdão…à sociedade que fabrica humanos!

Mas não vou tirar o mérito a Portugal. Este país fez muito pelo modelo de gado na educação das nossas crianças. Há que tirar o chapéu! Apesar de ser uma realidade além fronteiras.
Um país que deixa logo à nascença, a mãe e o bebé à sorte dos deuses. “Deus queira que a urgência não feche!” / “Se Deus quiser, há de correr tudo bem no parto!”
Um país que diz a uma mãe que fez um parto que tem 4 meses para se recuperar e voltar à labuta.
Um país que acha maravilhoso para o desenvolvimento do bebé, estar as tais 9/10 horas afastado da mãe. “Esperem que vamos dar o BÓNUS de 2h/dia para a mãe poder amamentar.” Não é bónus! NÃO – É – BÓNUS!!!!
Um país que NEGOCEIA o apoio financeiro das licenças com equações de valores de referência e dias mínimos obrigatórios e intercalados,4+1, 5+1, 180 dias de coiso e tal, -20% na remuneração…
Um país que “resolve” o problema GRAVÍSSIMO e BASILAR de uma sociedade como o número escasso de infraestruturas educacionais com o AUMENTO DE VAGAS POR SALA e apps funestas com o nome FELIZ lá escrito (????)
Um país que implementa o jogo do loto no momento de atribuição de vaga em creche, deixando centenas de pais a viajar km ou sem emprego/rendimento por terem que esperar mais uns meses ou anos, até.
Uma sociedade que normaliza o “no meu tempo não havia e estou aqui.”
E tantas outras realidades da qualidade do ensino que não me atrevo a enumerar para não correr risco de falhar nos detalhes. Porque são esses que contam. As estatísticas gerais denunciam a conjuntura, os nossos filhos denunciam a realidade, e a minha filha ainda não chegou ao patamar escolar.
Se isto não é uma fábrica de gado humano, então não sei o que é.
Mas andamos todos a dizer muuu…perdão, ámen a tudo isto.
Mães e pais, família, sociedade…o que andamos aqui a fazer?
A visão de mãe sobre a minha criança
Eu, como mãe, sei que a minha filha perante o todo é só mais uma. Para mim, é a minha nº 1 em tudo, mas sei como é a vidinha. E, não sei se te revês nisto, mas não imaginas o quão angustiante é pensar que o meu todo está atirada a este circo de leões sem poder fazer nada. Porque efetivamente, eu não consigo fazer nada. Não tenho a rede de suporte nem a estrutura financeira para que a minha filha não seja mais uma. Porque se, em sociedade trabalhássemos para o todo, nenhuma criança seria “mais uma” nesse conjunto.
Eu sei que a minha filha não é maltratada na creche. Mas sei que não é tão feliz e sei que a evolução de competências é tirada a ferros. Não desabrocha naturalmente. Este é o caso da minha filha. Uma miúda que não chora para ir para a creche, mas que só se abre a meio do dia. A reintegração a cada manhã é lenta. Eu sei disso pelo feedback das educadoras mas, principalmente, pelo rigor físico da miúda na entrada da sala. Educadoras que me dizem que a minha filha é tímida. E é! Eu sei que é. Eu conheço-a. Ainda estando afastada dela 10h por dia. Mas sei que ao fim dessas horas todas, a minha filha é outra.
Creche vs Casa

Sabes aquela velha dicotomia comportamental da “criança com os pais” vs a “criança sem os pais”?
Pois está claro, a minha filha é assim, como outro ser humano qualquer. Tem é um esquema diferente, mas talvez igual a tantas outras: a minha filha é a sua melhor versão em casa. A primeira vez que vi a minha filha a fazer a clássica “birra” na creche, eu fiquei assustada. Nunca a tinha visto assim. Absolutamente descompensada! Berros apocalíticos e tremores corporais. Sim, muito mau mesmo! O que eu vi mais a miúda fazer na creche? Empurrar e bater nas outras crianças, descompensar à mínima frustração, não encarar os adultos e crianças… E preocupa-me saber que ela em casa e com a família não faz NADA DISTO!!!
É uma criança que, na generalidade dos dias, vai pelo seu pé para a cama; uma criança que está sentada 1h numa mesa de restaurante sem um monitor; uma criança que ajuda nas tarefas domésticas (e ama! Arrumar compras, para ela, é Natal.); uma criança que fala e canta pelos cotovelos ao contrário na creche que “é preciso arrancar-lhe uma palavra, mãe!”; uma criança que na creche prefere brincar sozinha e em casa procura constantemente a nossa participação.
Quando as educadoras partilham com orgulho o desenvolvimento de uma nova competência, eu já a celebrei há 2 semanas. Ela já fez em casa. Ela já disse em casa. Ela já começou em casa.
Como é óbvio, houve muitas capacidades que a minha filha só desenvolveu no infantário. Evidentemente que ela faz coisas lá que deve e em casa não, como p.ex. a comida – mais facilmente ela come legumes e salada lá, em casa não (também por falta disciplinar nossa – é verdade, não somos pais perfeitos). Mas como é que a miúda em casa é, na sua essência, uma criança tranquila, sociável e cooperante e na creche é apelidada de “Drama Queen”? (sim, é mesmo. Chamam-lhe Drama Queen.) Alguém que tire o Stevenson da cova porque eu pari o Dr. Jekyll /Mr. Hyde.
“Ai que exagero! Ela está bem!”
Como adultos e partes integrantes de uma sociedade, que sabe dos recantos podres, estamos sensibilizados para o facto de que a creche/escola é o salvamento de muitas crianças. Infelizmente, há crianças que encontram refúgio nestas instituições. O que por si só revela também uma lacuna na qualidade da sociedade em si, não sendo apenas casos isolados de malvadez humana.

Eu começo a sentir um ligeiro aborrecimento em ler as ofertas educativas das instituições (públicas e privadas) pois é como ler o anúncio imobiliário: até o pardieiro mais reles é um potencial lar. Não é, meus caros. Inverto a analogia: até a instituição mais privilegiada não é um potencial lar para os nossos filhos.
Façam-me a pergunta: mãe, o que é que quer afinal? Uma instituição educativa. É como eu querer um emprego, não um trabalho. Não quero uma condição mínima. “Ai que exagero! A menina vai todos os dias para casa limpa e alimentada, não lhe chove na cabeça, ninguém lhe bate…”. Esse é o prémio Nobel da imbecilidade argumentativa. Eu nem vou dizer que isso é o mínimo. Isso nem sequer é uma capacidade da instituição. Alimentar, limpar, boas condições de espaço e não bater/violentar…isso é o obrigatório inegociável que não tem lugar sequer em considerações.
O que quero é um local, pessoas e uma sociedade a quem eu possa confiar os meus filhos sem sentir a mínima insegurança e que não me faça questionar o valor educativo, enquanto vou trabalhar para pagar esse local, a essas pessoas e a uma sociedade económica que nos deixa na mão, a todos nós. Mas este ciclo já foi inventado há muito. Não deve ser agora que o vamos mudar.

“Ai que exagero! Ela está bem!”
u não sei mesmo. Eu não sei se passa pela clássica formação quadrado de protesto ou petições…. Não sei mesmo. E isso leva-me também a redigir este texto, na procura de um agrupamento de pessoas que pensam nisto, que sentem estas palavras e que se revejam nem que seja numa única frase em tudo o que escrevi até agora, e que procuram soluções.
O meu compromisso (e o nosso enquanto pais) é minimizar ao máximo o impacto desta conjuntura social que o Portugalinho criou, na minha filha. Porque na realidade, ela é só MAIS UMA. Mas para mim não.
Portanto, a ti que estás aí a ler este desabafo: se és parte ativa desta luta e tens os contactos e as referências que trabalham todos os dias para que a educação humanizada seja a realidade das crianças e dos jovens deste país, gostaria muito de participar e partilhar essa luta junto do meu círculo.
Como dizia a minha avó “com a canalha é preciso 1000 olhos!”
Nunca eles precisaram tanto dos nossos 2 olhos.
Obrigada por estares desse lado,
Sara – Slow Living Portugal.